12.18.2013

Se a pele for o limite do corpo. corresponde aos contornos da figura humana para quem desenha. Se a pele se expressar em dueto. então a pele são os poros, as peles respiram(-se). A pele reveste movimentos de repetição, a nossa rotina, o nosso desejo, de troca, a nossa repulsa, de repetição. sensualidade ou seco táctil. e ninguém pode esquecer todos os outros sentidos, apesar de, ou precisamente porque, se trata de pele. Coreografando, acrescentamos mais pedaços do arquivo humano de movimentos. desenhando, fundimos, alongamos, jogamos. encenando, brincamos com o reflexo das peles, uma contra a outra, uma atrás da outra, revelando, revelando. Se a pele for o limite do corpo. resistimos.

A pele, como limite, em dueto, merecia mais poros, olhos, corações!

1.07.2013

Daqui a algumas horas vou mudar de Estado. Vou juntar-me a todos os que migram para deixar de ser o que eram. Não sei se falo a língua do meu destino.

5.13.2012

Da Noite ao Silêncio


Bernardo Sassetti - Da Noite ao Silêncio

Uma peça musical pode conter a raridade que procuramos no Homem.
Consistência, para não nos distrairmos. Delicadeza, para imaginarmos. o toque suave das mãos, os dedos esvoaçando sobre o teclado, a nota aguda que afinal está aflita. Sensibilidade, para sermos injustos. Fragilidade, para sermos maiores. oh aquele crescendo!
As peças raras usam artifícios. ao piano juntaremos o violino! (retire o imperativo ponto de exclamação. foi apenas um som que comecei a ouvir enquanto compunha) Fazem apelos velados. arranhar as cordas acentuando formas de beleza. de tristeza. Seduzem. oh aquele crescendo! São imperfeitas. a exaltação que não se cumpre. (permita-me, porque vai preencher a outra peça!)
Quem é o homem simples que compõe e executa? Queremos pôr a mão nesse ombro. Somos compelidos à aproximação.
Se vamos atrás dele e ele é já uma ausência. Descobrimo-nos incapazes ou absurdos. Tememos. oh aquele crescendo! (faria bem se estudasse um pouco mais.o crescendo é quase inexistente neste pianíssimo, senhora, pianíssimo)

2.21.2010

do amor

às minhas duas filhas


... e ela disse que eu vos amava porque vocês são uma extensão de mim, como se o meu corpo e tudo o que eu sou se dilatasse, se estendesse, desdobrado nas duas que sois, e completo nas duas que sois, como se eu fosse com vocês um espaço contido em limites, como se eu fosse um tempo que não expirasse com a minha morte. e eu não consegui dizer que não mas é não. o meu amor por vós tem o fundamento da vossa estranheza, das vossas dores e fragilidades__ que não são minhas, da vossa inocência e esperança__ que não são minhas, da vossa beleza e encanto__ que não são meus. e é imenso. desmesurado. às vezes maior do que as minhas forças e competências. e o amor, esse amor, nasce de um dom que eu tenho e que não vou perder. um dom que se revelou face à vossa estranheza. de vos querer servir bem no amor. de vos dar o que sei ___ e às vezes até a minha ignorância. de vos dar cuidados e beijos. até à exaustão. até parecer que me extingo. e em dias bons, e são muitos os dias bons, até parecer que sou feliz.
o que é meu é só esse amor, não vós.

Memória dos cárceres


É frio o ar que circula na cela. As paredes enregelam por fora e estuque, ferro, tijolo, miolo de parede, absorvem o gelo. O azul não é como um toldo de céu. é tinta estalada como a casca de um tronco de árvore. Só os pés se conservam quentes. Ela encolhe os dedos dentro das meias para secar a primeira sensação de humidade.

O amante era severo. mais do que avaro. como o director. Não ousava comover-se ou tentar confortar. como o director. O amante dormia. o director dorme com guardas à porta. Tão indefeso quando o olhou pela última vez. É só por isso que ali está. O amante dormia indefeso. Se ele estivesse desperto, o juiz sentiria maior simpatia.
Quando os corredores se esvaziam, ela lembra-se da casa onde vivia. No cárcere, a insónia é maior apenas porque desapareceram as sombras do medo. mas o choro que se ouve todas as noites e ecoa sem destino é um consolo, um abraço silencioso. Em casa, ninguém chorava.

Às vezes falam-lhe de culpa. Terá a culpa a forma dessa última imagem do amante_ quando quase esquece o ódio ao seu sono pesado e satisfeito?
Em trote de passeio os guardas aproximam-se. vão abrir de mansinho o pequeno postigo e espreitar. Ela imita o sono do amante. tão indefesa. Sentirão culpa.

Às seis horas, a campaínha soará. Limpará a cela com desvelo. Com o estômago colado, aguardará em silêncio a hora do pequeno-almoço pálido. o leite aguado, o pão embalado e enrugado, o olhar como os dedos da mão_ finos e nervosos, do director.
Lá fora, a mãe espera, o filho esqueceu a mãe que ela já foi. Lá fora, o ar que circula é frio e o céu é um toldo que terá sempre o tamanho do pátio da prisão. O director é avaro até no céu que oferece. vive rodeado de guardas. o juiz poderá sentir simpatia. Onde há dor há profanação. deus amante, deus director. a deus.


Imagem: Wlodek Warulik (2006). Lonely. Acrílico s/ tela - 100x110 cm.

4.13.2009

torre sineira #2


Subitamente levantou o pulso, procurou a hora que o seu relógio marcava e deu-se conta de que o tempo parara. O ponteiro dos segundos estava enredado no dos minutos, presumiu que a hora seguinte nunca chegaria.

Em baixo, na praça, um homem parou quando a avistou. Olhou para o relógio da torre e não convencido da inevitabilidade da paragem do tempo, sobressaltou-se. Durante um minuto, o movimento dos seus olhos quase enjoou do balanço. Os sinos, ela, o relógio, os sinos, ela, o relógio. Anteviu o movimento súbito, lento, vigoroso, do bronze pesado, afinado, mortal. Os braços abertos sobre a saia que esvoaçava. Não via o rosto. Quis gritar: - Afaste-se!

Sentindo-se abençoada, ela permanecia imóvel, obedecendo à ordem do tempo. Estranhou sentir o rosto formar um sorriso, um pequeno sorriso que deveria ter permanecido interior. O olhar pousou então um pouco, o suficiente para avistar um homem que, tal como ela tantos dias, estancara face à visão da torre cantante.

Quando estalou um ruído seco de alavanca...




[Imagem: José Rodrigues - Sem título - Técnica mista sobre cartão - 24,5cm x 31,5cm]

torre sineira


Sempre que atravessava aquela praça olhava a torre. Por vezes os sinos repicavam no exacto momento em que ela passava e então parava, sustinha os movimentos, hipnotizada. Uma torre assim nos Paços do Concelho era engraçado. Em vez de Deus, era o poder laico que ditava o horário, advertindo a população sobre o momento do despertar ou do recolher, ou apenas da pausa, das pausas, ou da necessidade de se apressar, de correr ao som do quarto de hora para não chegar atrasado ao encontro à hora certa.
Sempre que cruzava a praça, olhava para o relógio. gestos irreflectidos, de estender o braço, puxar a manga, olhar sem ver, quase, com a intenção arcaica de se certificar que o mecanismo continuava saudável. Ou fazia apostas infantis. chegaria à floreira antes do primeiro toque, dobraria a esquina antes da última badalada, ou adivinharia o exacto momento em que começariam os sinos a repicar. agora não, agora sim… sem que tivesse alguma importância acertar ou não. Às vezes, compassava pensamentos ou palavras com o som.

Foi com uma alegria excessiva, despropositada, que aceitou entregar a encomenda na torre. Logo à entrada do edifício, o segurança orientou-a. A secção que procurava ficava no último andar, deveria subir, de elevador até ao segundo piso, depois a pé. Quando chegou ao lance de escadas, tosco, irregular, apertado, percebeu que estava precisamente no alto da torre. Como num velho castelo, equilibrava-se apoiando-se nas paredes. A meio percebeu uma porta mas decidiu não entrar. Os sinos estavam ali ao seu alcance. Continuou a subir. O corredor estreitava, os ângulos apertavam, até uma corrente de ar fresco ganhar corpo, adensar, e uma luz intensa quase a cegar. E de súbito, ei-los, gigantes, compactos, poderosos. Aproximou-se devagar, deslizou silenciosa pelas traseiras do primeiro, depois avançou, colocando-se entre os dois primeiros sinos, e estancou. O horizonte distante, o mar ao longe, e ainda o outro lado da baía, mais próxima a paisagem de telhados e arvoredo, até chegar à praça que conhecia tão bem, ali em baixo, com as suas floreiras e o empedrado geométrico. Subitamente levantou o pulso, procurou a hora que o seu relógio marcava. olhou a encomenda como a última oferenda de uma vida de trabalho. criou outro tempo.



[Imagem: José Rodrigues - Anjo - Técnica mista sobre cartão - 106cm x 60cm - 1997]

1.31.2009




Lucas Almeida, Hábito

Por baixo desta carapaça #2

No terramoto de 1998 a minha casa foi parar ao meio da estrada. A mercearia, que me dava tantas noites de insónia pelas fissuras que cresciam mesmo sem grandes tremores, foi poupada. Pareceu-me um milagre. Não fora isso e nunca teria arranjado forças para voltar a levantar muros e desenhar janelas a fio de prumo. Veja as minhas mãos! Venha cá, apague o cigarro nas minhas mãos! Apague! Não dói nada! A enxada que usei para fazer cimento deu-me e tirou-me todas as dores. Misturar bem aquela massa, juntar-lhe a areia, a água, volver, revolver, entremeá-la entre os tijolos, sem contar com a ajuda de ninguém, só com os meus braços e o dinheiro poupado a custo, muito custo, muita fome. E depois, veja lá, tipos que estavam no desemprego, que nunca trabalharam, a viver à custa da Segurança Social, abriam a boca e metiam-lhes a comida pela goela dentro, pedinchavam e tinham casas novas, móveis, tudo. Até vieram emigrantes, gente que nem vivia nas casas, pedir dinheiro. Deram-lhes tudo. A mim ninguém deu nada, nem madeira, nem tintas, nem um pincel! Não tenha medo, apague o cigarro nas minhas mãos!

Atrás do balcão, num canto, as netas, gémeas, faziam desenhos, aparentemente alheias à conversa. Mas quando o avô fez uma pausa no desabafo, levantaram o rosto e olharam-me com antipatia, ou mesmo raiva.

Por baixo desta carapaça

Durante mais de trinta anos, os burgueses de S. Bartolomeu de Loure invejaram a Dona Agustina Dessa a sua criada Celinha. Por pouco mais de dois contos de reis por ano, o suficiente para dar um bom presente à afilhada pela Páscoa e para viver sem grandes ilusões, tratava da lida da casa, lavava e engomava os cortinados no início de cada estação, e Deus sabe como aquele palacete era mais janelas que paredes, polia pratas todos os quinze dias, lavava os serviços de cristal com vinagre sempre que eram utilizados, cuidava da criação, sabia matar galinhas e esfolar coelhos, cozinhava que era uma benção, e manteve-se fiel à patroa - embora ela fosse pessoa de trato difícil e sorriso tíbio.

Muito nova casara com um rapaz da aldeia vizinha de Seixo. Quando o conheceu estava num altar, e ninguém foge ao destino, dizia depois. Foi num Domingo ou Dia Santo. Tinha quinze anos e cantava no coro da missa das oito. Ainda o padre não saíra da sacristia e já tinha dado por ele. Era novo por ali e tinha uma impertinência agravada pela altura. Com a cabeça acima dos outros, só quem fosse cego é que não via que sorria para ela o tempo todo. Desde o primeiro dia, Santo Deus! A vê-la rezar o Pai-Nosso ou o Acto de Contrição, a ouvi-la cantar a Avé-Maria, mas sobretudo nos momentos em que ela respondia ámen, soltava um olhar tão prazenteiro, que mesmo a fraca má língua começava a afiar. A Celinha nem caíu de amores à primeira desobediência do olhar, a bem da verdade até desdenhou. De tão magro, ele parecia que tinha um buraco no peito. Nem se lhe viam os botões da camisa! Mas acabou por se prender àquela presença e, quando deu por si, já mal dormia nas noites que antecediam a missa.
Não fosse ter-se casado com esse homem, que acabou por escavar-lhe também um buraco no peito, e nunca a Dona Agustina Dessa teria encontrado a criada Celinha que todos cobiçavam.

1.20.2009

Me porté como quien soy

Ceci n'est pas le Paradis II
Pedro Tavares - 2008



1.
Ele cicia um canto hondo enquanto mira a paisagem. De tempos a tempos, o sussuro musical desperta-a. Viajam no mesmo pequeno compartimento como se estivessem sós. De noites longas em noites longas, o cansaço apoderou-se dela. A pele continua lisa, é uma cara pálida que se deixa embalar pelo pouca terra muita terra. Ele tem um revestimento curtido pelo sol. Cicia. Os olhos são grandes, a memória longínqua.

O revisor faz deslizar a porta com brusquidão. Pica os bilhetes espreitando o par e vira as costas, deixando o corredor à vista, os passageiros expostos. Ah, estes homens tão pouco gentis, diz bem-disposto, enquanto se levanta para garantir privacidade ao casulo. Qual é essa canção? Isso é flamenco? Unh, não sei, é a minha música. Gosto dessa música, diz ela. E ele responde Se tivesse uma guitarra, cantava-lhe uma canção a sério. Vem donde? De Espanha, mas é segredo. Desci o Guadiana. Os olhos dela arregalam. Todas as quintas carrego o barco com mantas, colchas, lençóis, tudo da máxima qualidade, para distribuir nas feiras. Onde estão as mercadorias? Ah, hoje não trabalho. Deixei ordens ao meu irmão. Vou p’ra um casamento. E sorri largo.

2.
A memória que não se perde.
Estás a ver a feira de Espinho, ficava na vinte, entre as ruas trinta e três e trinta e cinco. Uma casa amarela, cheia de rachas, parecia que podia cair a qualquer momento. Não tinha porta, havia um carreiro à esquerda e entrava-se por uma janela que corria rente ao chão. Ela levou-me lá. Começámos a conversar porque nos encontrávamos todos os dias no trajecto para a escola. No início acho que nem gostava de mim. A mãe e a tia foram simpáticas. Queriam que eu lanchasse, e riam-se imenso. Eu estava admirada. As paredes forradas com um papel que tinha cornucópias de veludo, os sofás e poltronas majestosos, tudo em bourdeaux! Eu já os conhecia da feira mas não sabia que eram ricos.

E o imaginário que nos povoa.
As notícias hoje, as notícias todos os dias, este país é uma miséria. Vê o caso da escultura da Santa. O pároco cedeu-a por uns meses a um Museu e aconteceu um motim na aldeia. Um cigano foi baleado e está internado em estado grave. Na aldeia queriam bater no padre, no hospital bateram nos jornalistas. que eles só sabem dizer mal dos ciganos.

Nos hospitais têm medo. Quando uma mulher deita um ciganito ao mundo, ela dá pontapés, pragueja. E ai se corre mal, é tareia pela certa.
Experimenta meter-te com um, ciganos e navalhadas andam juntos. É claro que não são todos iguais. Há um que se formou. Era ele que ainda outro dia dizia “aproximam-se tempos maus”. Se eles não podem vender contrabando e contrafacção, vão vender o quê? Drogas e armas!

Uma miúda seguiu-me. Apanhou-me ali na ponte e nunca mais me deixou em paz. Teria uns seis anitos. Queria que lhe comprasse leite em pó Nidina II para o irmão. Passámos pelo supermercado e comprei-lhe o leite. Era era tão bonita.

Pois, é um problema com a escola. Se os obrigam a ir, fogem. Se querem ir, os pais dos outros alunos expulsam-nos. Os adultos vão aprender a ler só para receber o Rendimento Mínimo Garantido. Querem lá saber daquilo!

3.
Quando se olha do centro para fora, os ciganos são vistos no limite da fronteira. São portugueses e estrangeiros, ao mesmo tempo. Quando são eles que se olham, não são uma coisa nem outra, são ciganos. Agora ela está bem desperta e fala demais.
- Lembro-me de um casamento na minha terra. Vieram ciganos de todos os cantos do mundo. Vai ser assim, esse casamento?
- Não, só vem gente de Portugal e de Espanha. É quase só família!
- Uma vez, na minha terra, uma cigana casou-se com um homem que não era cigano.
- Pois, às vezes acontece, mas ela não deixou de ser cigana, ele é que passou a ser.
- Não sei.
- Mas eu sei.
- É mais fácil deixar de ser cigano do que passar a sê-lo.
- Se ela nasceu e cresceu cigana, é mais forte, tem mais ganas do que ele. E se ele não quer ser largado, tem que gostar dela como ela é.
Sorri largo.

4.
A honra é um valor primordial que organiza as relações amorosas e de poder entre ciganos. Em La Casada Infiel, de Lorca, um cigano narra a sua desilusão com a cigana que levara ao rio. Pensava que ela era solteira mas, ao saber que tinha marido, é obrigado a mostrar a sua honra de “cigano legítimo”:

Y que yo me la llevé al río
creyendo que era mozuela,
pero tenía marido.
(…)
yo me quité la corbata.
Ella se quitó el vestido.
Yo el cinturón con revólver.
Ella sus cuatro corpiños.
(…)
No quiero decir, por hombre,
las cosas que ella me dijo.
La luz del entendimiento
me hace ser muy comedido.
(…)
Sucia de besos y arena,
yo me la llevé al río.
Con el aire se batían
las espadas de los lirios.

Me porté como quien soy.
Como un gitano legítimo.
La regalé un costurero
grande de raso pajizo,
y no quise enamorarme
porque teniendo marido
me dijo que era mozuela
cuando la llevaba al río.

Garcia Lorca [1924-7]

5. Disse-lhe que podia aprender coisas novas com a Viviane. E a minha filha foi brincar com ela. À noite, antes de adormecer, murmurou: - ela não sabe. Não sabe o quê? - que é cigana.

11.17.2007

Não sei se é uma porta nem adivinho as cores da casa, mas bato. Passei nessa rua tantas vezes. Tantas vezes a encenar a mão a fechar e os nós dos dedos a bater. Mas era sempre não. Estou velha, não existem sítios ávidos, só paragens. O amor é uma natureza morta. Tantas vezes a sentir essa força ligeira, ligeira morte, desapercebida. Entretanto a carne e a sua maneira de falar. Mas não foi por isso. Tentei sobre-viver hoje. Sobre-vivo pouco mas ando sempre meia atenta à sobre-vivência e hoje estive de um lado de cá de mim. Bati à porta como quem vende bíblias fingindo que é livre. E afundei abarrotada de vazio. Podia falar do tremor que sentia ou do teu silêncio mas não vale a pena. O tremor pertence-me e o teu silêncio dói. Eu, sentada à beira da mesa, estendida, a dizer que sim, pois que sim, o peso da contingência, mesmo assim à espera. de compreender se haveria um momento em que a doçura entrasse, com ou sem vestes de volúpia. Faço de ti matéria macia e doce e não entrevejo dentes que possam ferir-nos. Mas existe o Bem e o Mal e arrancaste-me o Mal da boca. Eu ia muito longe buscar imagens. Afundei. Não faz mal. Sou rica em abrigos oceânicos. Mas estou aqui. A ver-te libertar-te de mim, sem saber se te dói pouco ou nada.

Toca uma campainha. O céu quebra-se vezes demais. Mas eu atendo. Não convém perdermo-nos das contingências.

10.09.2007

DDiArte
Thera, 2005



- Parece-me que já nos vimos antes. Talvez nos nossos sonhos.
- Nunca seria vista nesse tipo de lugares.

5.26.2007


desejos que não se abraçam
casas quentes com janelas sempre abertas

ladrões de temperaturas não entram.

2.02.2007

sempre esta vontade. de me deitar. e então aconchego-me
e adormeço. à espera que a bondade me desperte. para o que é belo.
e me baste.

12.25.2006

Natal

Em Dezembro da minha janela vejo o mesmo néon do Hotel que ali mora há anos. Por alguns dias, o néon tem a cor dos enfeites das árvores. O Hotel antigo envelhece um pouco mais, parece uma peça de presépio. A ponte poderia ser coberta de musgo e o rio ser coberto de areia do deserto.

Não sei o que poderia ser eu à janela. mas há dias em que me apetece voar. como um anjo. e plena de luz e de bondade, enrolar em cobertores todos os passantes.

11.13.2006

a porta

Sokolsky

acabei por me despir. quando olhei para trás, as roupas tinham desaparecido. pareceu-me ver um rasgo de tinta escapar por baixo da porta fechada. instalei-me ali, no lugar. encostei-me às paredes, rocei-me por todas as superfícies. tacteei o chão. as mãos secaram e lambi-as. atravessei o lugar. medi-o em pés. medi-o em corpo. atravessei o lugar. e bati, bati com toda a força na porta. chamei. atravessei o lugar. chamei. nunca responderam. nem mesmo se distrairam. quando os homens se distraem deixam a televisão acesa e posso imaginá-los no fundo do corredor, atrás de outra porta, sentados à volta de uma mesa a discutir. às vezes o meu barulho provoca um silêncio. mas isso não aconteceu. agarrei-me a mim. dobrei-me. a minha explicação ficou do lá de cá da porta.

às vezes adormeço. sonho com terra lavrada, extensões imensas cultivadas, toco as plantas, os meus dedos sentem a textura das folhas, ouço um ribeiro que corre, levo à boca a água fresca. e acordo com frio. urlo. mas a porta não abre. ontem reclamei tanto que jorraram litros de tinta vermelha. entraram por debaixo da porta. aproximaram-se primeiro dos pés e, como uma ligadura, foram-me envolvendo. a tinta fez um nó nos tornozelos, à volta dos joelhos, nos pulsos, cobriu-me a boca. a tinta atou-me. fiquei imóvel e muda.

se a porta não abrir, ninguém vai saber.
quando não penso em nada, pequenos laivos de cor vão desaparecendo.














já tenho os cabelos soltos. as mãos libertas. movo os lábios. grito: abram a porta.
um líquido azul desce pela fechadura. inunda-me. não é que doa mas a cada tentativa, este lugar enche-se de cor.


consegui virar-me. de costas para a porta, talvez os engane. o suficiente para voltar a grunhir que quero a porta aberta para explicar. eu tenho uma teoria. eu tenho provas. vão cair paradigmas. quando olharem uns para os outros, homens e mulheres vão deixar de se reconhecer.
nos cantos do lugar apareceram pingos amarelos. pequenos fios cor de laranja cercam-me os seios. as minhas lágrimas são verdes.

eu tenho uma teoria. não sei porque não abrem a porta.



abri a porta quando o silêncio se prolongou por vários dias.
ela dormia. julgo que já não vai acordar.
o lugar ficou tingido de verdades coloridas.
não reconheci nenhuma.

por que persistiu? vou precisar de muita água.
- o guardião

diante da porta



"Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?". O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: -"Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta.

11.03.2006

invenção



Lilly já foi Faustine e eu, numa pequena escala, fui Morel. durante algum tempo arranjei um processo, meu invento, de armazenar imagens, sons e sensações extraídas da realidade, que reproduzi, projectei repetidas vezes, envoltas em cenas de vida também capturada. Lilly Faustine encantou alguns refugiados políticos. enciumou solitários. encarcerou loucos. os seus amantes eram estranhos visitantes, odiados, invejados. por vezes, alguém avistava dois sóis ou duas luas e percebia o artifício. da presença simultânea do sujeito-objecto hoje e da sua imagem passada.
naquela casa, às vezes, o lençol era branco numa cena e depois azul, como se alguém se ocupasse da limpeza, como se o tempo passasse e usasse as coisas. mas também acontecia que o livro fosse lido e depois pousado exactamente no mesmo lugar, no mesmo ângulo, ao canto da mesa. algo irreal. suspeito. uma marca inusitada do invento.

Lilly Faustine talvez tenha existido mesmo, se não, o que captou a minha lente? com que engenho projectei uma imagem que nunca foi gravada? Ela existiu.

mas apanhou um barco e saiu da ilha.
ou ainda anda por lá e errei quando, numa noite, sonâmbula, peguei num bote e acostei noutra ilha. no Pacífico, existem tantas ilhas. parecem iguais mas cada uma tem o seu ecossistema, as árvores, mesmo da mesma espécie, diferem de tamanho, e o número de clareiras varia.

não, descuro os sinais.
pude perceber, houve indícios, de que em todas as ilhas Lilly Faustine estava morta. acho que pereceu contaminada pelas radiações que impulsionavam o engenho.

as imagens talvez se repitam eternamente. se o sistema de marés o permitir, se a força das ondas accionar o projector.
aconteceu agora. as chuvas, foram as chuvas. não sei o que foi. na verdade não percebo nada de marés.

também me acontece pensar que a ilha foi invadida. como pode Lilly Faustine acomodar-se naquela rocha até à hora do ocaso, a contemplar o horizonte, a espreitar um livro, se um intruso se sentar ao seu lado? é claro que eu Morel sempre permiti que a observassem, desconfio mesmo que coreografava os gestos, contava os tempos de cada movimento, estudava a postura. sussurrei volúpias e arrazoados dizeres. desconcertante! mas jamais imaginei que um espectador pudesse colar-se à imagem e fotografar-se ao lado de Lilly Faustine.

Lilly Faustine não existe há muito tempo. Eu sei, Lilly vê, Lilly cheira, Lilly sente o que toca, logo, Lilly tem alma. Mas o que eu Morel ofereço é uma imagem, que não se acaricia.

aguardo que ela deseje reaparecer. abri até uma enseada. enquanto vou consertando o engenho. na biblioteca encontrei um livro que talvez me esclareça sobre as novas correntes geomagnéticas da Terra.

10.30.2006

ave negra. sou uma ave negra. sou um corpo esvaído de sangue. embalsamado. não mais serei fecundada. não mais farei brotar vida. a vida mete-me em jaulas. a vida alucina-me. espreito entre barras. cu-cu-cu-cu. e não vejo nada, ninguém me responde. bréu. bréééééééu.bréééééééééééééééééééu.

9.22.2006

raíz #2

Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto

Ruy Belo

9.20.2006

raíz #1

E fiz força, comigo, para me soltar do encantamento.

Guimarães Rosa, Primeiras estórias

era uma vez

Lars Lhring


envoltas em papel de fadas começavam sempre com era uma vez as histórias que me contavam na infância
mãos que desfolhavam os mistérios doces mãos acetinadas todas as mãos que me tocaram adormecidas no meu conforto da sucção do dedo do sossego da noite sob o manto da cama
até ao despertar das paixões que me envolviam como histórias de fadas amarravam libertavam encantos sentidos primeiros sentidos prantos de quem conhece a perda trôpega vela fadas sem asas quem suplica à memória marcas dos abraços apenas daqueles braços suplica à memória traços tules feitos em pedaços que me tocaram depois todo o corpo feito colo até se abrir o ventre sobre o manto da cama esquecido o primeiro espanto de quem arde por dentro lança chamas deixa crescer as garras sob mãos adormecidas em leitos de rios suaves mornos abraços apenas daqueles braços.

9.17.2006

escuta a minha voz

JOHN CAGE. OBRA: 4 MINUTOS E 33 SEGUNDOS.



A escolha dos 4 minutos e 33 segundos é devido aos 273 segundos. Na escala Kelvin de temperatura, -273º C corresponde a 0 K, que é o zero absoluto, ou seja, estado de repouso completo das moléculas.

9.14.2006

era uma vez

Lars Lhring


embalam-nos com fadas e meiguice, contam-nos histórias que começam sempre por era uma vez e na manhã seguinte ou passados vinte anos, que importa, é subitamente, recebemos bofetadas de atrocidades, tareias de um realismo insuportável. falo-te desse momento em que acontece a despedida da infância. a guerra passa a existir. o conforto é sobretudo alívio. sinceridade e provocação vivem dentro de nós paredes meias. avançamos a pulso. fracturamos o corpo, corpos. medimos o pulso quando deixamos de nos sentir. não ardemos, secamos. e ao amor e à arte chamamos milagre.

9.11.2006

intensidade

Je le vis, je rougis, je pâlis à sa vue;
Un trouble s'éleva dans mon âme éperdue;
Mes yeux ne voyaient plus, je ne pouvais parler;
Je sentis tout mon corps, et transir et brûler.

Phèdre quando encontra Hippolyte pela primeira vez
Racine, Phèdre (1677)


intensidade. dizes que me falta. quando te escrevo, não sei se quando te olho. e dissecas-me. o passado, o dia, a tarde, as noites puras e aquelas em que busco respostas. transformas camas em sofás e que me confesse, sem saberes que a psicanálise, não sendo um discurso que nos proibe de ter prazer, permite justamente que não tenhamos prazer. como se o teu desejo último fosse o meu desejo da não-satisfação, tu que me dás tanto prazer. bato-me para fechar o desejo que se abre de forma tão inoportuna. sabes, o mais delicioso, o mais forte, acontece quando menos esperamos. há todo um ritual de descobertas entre surpresas e desilusões, e a obra inesperada do que sou, és, e somos, há-de emergir. aos poucos. como um livro se revela página a página, batendo-se contra a nossa ignorância, a nossa diferença ou indiferença, o nosso sono.
pedes-me entusiasmos, superlativos, numa vida que está em fim de ciclo e que me pesa por todas as impressões contraditórias, distorsões naturais do verbo, ou desuso familiar da razão. a intensidade é a maior de todas as subversões. um mergulho na bizarria da quimera. e contudo...
e contudo eu sei que existem palavras mágicas, palavras que elevam o canto do mundo, nos batem no peito com força, tanta força que a maior arte é saber retê-las e domá-las, para que nos deixem mas regressem sempre. se numa qualquer Babilónia me oferecessem esse dom usá-lo-ia para te agradar, acasalando-o com todo o saber que derivasse do que está dentro e acima da consciência. uma espécie de perfeição.
de que não padeço. e que ninguém, nenhum amante, nem mesmo um deus, merece. ou não fosse o amor a aprendizagem do sofrimento e a adoração incondicional do limite que é o outro.
intensidade. lê os meus olhos.

lê os meus olhos