2.21.2010

do amor

às minhas duas filhas


... e ela disse que eu vos amava porque vocês são uma extensão de mim, como se o meu corpo e tudo o que eu sou se dilatasse, se estendesse, desdobrado nas duas que sois, e completo nas duas que sois, como se eu fosse com vocês um espaço contido em limites, como se eu fosse um tempo que não expirasse com a minha morte. e eu não consegui dizer que não mas é não. o meu amor por vós tem o fundamento da vossa estranheza, das vossas dores e fragilidades__ que não são minhas, da vossa inocência e esperança__ que não são minhas, da vossa beleza e encanto__ que não são meus. e é imenso. desmesurado. às vezes maior do que as minhas forças e competências. e o amor, esse amor, nasce de um dom que eu tenho e que não vou perder. um dom que se revelou face à vossa estranheza. de vos querer servir bem no amor. de vos dar o que sei ___ e às vezes até a minha ignorância. de vos dar cuidados e beijos. até à exaustão. até parecer que me extingo. e em dias bons, e são muitos os dias bons, até parecer que sou feliz.
o que é meu é só esse amor, não vós.

Memória dos cárceres


É frio o ar que circula na cela. As paredes enregelam por fora e estuque, ferro, tijolo, miolo de parede, absorvem o gelo. O azul não é como um toldo de céu. é tinta estalada como a casca de um tronco de árvore. Só os pés se conservam quentes. Ela encolhe os dedos dentro das meias para secar a primeira sensação de humidade.

O amante era severo. mais do que avaro. como o director. Não ousava comover-se ou tentar confortar. como o director. O amante dormia. o director dorme com guardas à porta. Tão indefeso quando o olhou pela última vez. É só por isso que ali está. O amante dormia indefeso. Se ele estivesse desperto, o juiz sentiria maior simpatia.
Quando os corredores se esvaziam, ela lembra-se da casa onde vivia. No cárcere, a insónia é maior apenas porque desapareceram as sombras do medo. mas o choro que se ouve todas as noites e ecoa sem destino é um consolo, um abraço silencioso. Em casa, ninguém chorava.

Às vezes falam-lhe de culpa. Terá a culpa a forma dessa última imagem do amante_ quando quase esquece o ódio ao seu sono pesado e satisfeito?
Em trote de passeio os guardas aproximam-se. vão abrir de mansinho o pequeno postigo e espreitar. Ela imita o sono do amante. tão indefesa. Sentirão culpa.

Às seis horas, a campaínha soará. Limpará a cela com desvelo. Com o estômago colado, aguardará em silêncio a hora do pequeno-almoço pálido. o leite aguado, o pão embalado e enrugado, o olhar como os dedos da mão_ finos e nervosos, do director.
Lá fora, a mãe espera, o filho esqueceu a mãe que ela já foi. Lá fora, o ar que circula é frio e o céu é um toldo que terá sempre o tamanho do pátio da prisão. O director é avaro até no céu que oferece. vive rodeado de guardas. o juiz poderá sentir simpatia. Onde há dor há profanação. deus amante, deus director. a deus.


Imagem: Wlodek Warulik (2006). Lonely. Acrílico s/ tela - 100x110 cm.