1.31.2009




Lucas Almeida, Hábito

Por baixo desta carapaça #2

No terramoto de 1998 a minha casa foi parar ao meio da estrada. A mercearia, que me dava tantas noites de insónia pelas fissuras que cresciam mesmo sem grandes tremores, foi poupada. Pareceu-me um milagre. Não fora isso e nunca teria arranjado forças para voltar a levantar muros e desenhar janelas a fio de prumo. Veja as minhas mãos! Venha cá, apague o cigarro nas minhas mãos! Apague! Não dói nada! A enxada que usei para fazer cimento deu-me e tirou-me todas as dores. Misturar bem aquela massa, juntar-lhe a areia, a água, volver, revolver, entremeá-la entre os tijolos, sem contar com a ajuda de ninguém, só com os meus braços e o dinheiro poupado a custo, muito custo, muita fome. E depois, veja lá, tipos que estavam no desemprego, que nunca trabalharam, a viver à custa da Segurança Social, abriam a boca e metiam-lhes a comida pela goela dentro, pedinchavam e tinham casas novas, móveis, tudo. Até vieram emigrantes, gente que nem vivia nas casas, pedir dinheiro. Deram-lhes tudo. A mim ninguém deu nada, nem madeira, nem tintas, nem um pincel! Não tenha medo, apague o cigarro nas minhas mãos!

Atrás do balcão, num canto, as netas, gémeas, faziam desenhos, aparentemente alheias à conversa. Mas quando o avô fez uma pausa no desabafo, levantaram o rosto e olharam-me com antipatia, ou mesmo raiva.

Por baixo desta carapaça

Durante mais de trinta anos, os burgueses de S. Bartolomeu de Loure invejaram a Dona Agustina Dessa a sua criada Celinha. Por pouco mais de dois contos de reis por ano, o suficiente para dar um bom presente à afilhada pela Páscoa e para viver sem grandes ilusões, tratava da lida da casa, lavava e engomava os cortinados no início de cada estação, e Deus sabe como aquele palacete era mais janelas que paredes, polia pratas todos os quinze dias, lavava os serviços de cristal com vinagre sempre que eram utilizados, cuidava da criação, sabia matar galinhas e esfolar coelhos, cozinhava que era uma benção, e manteve-se fiel à patroa - embora ela fosse pessoa de trato difícil e sorriso tíbio.

Muito nova casara com um rapaz da aldeia vizinha de Seixo. Quando o conheceu estava num altar, e ninguém foge ao destino, dizia depois. Foi num Domingo ou Dia Santo. Tinha quinze anos e cantava no coro da missa das oito. Ainda o padre não saíra da sacristia e já tinha dado por ele. Era novo por ali e tinha uma impertinência agravada pela altura. Com a cabeça acima dos outros, só quem fosse cego é que não via que sorria para ela o tempo todo. Desde o primeiro dia, Santo Deus! A vê-la rezar o Pai-Nosso ou o Acto de Contrição, a ouvi-la cantar a Avé-Maria, mas sobretudo nos momentos em que ela respondia ámen, soltava um olhar tão prazenteiro, que mesmo a fraca má língua começava a afiar. A Celinha nem caíu de amores à primeira desobediência do olhar, a bem da verdade até desdenhou. De tão magro, ele parecia que tinha um buraco no peito. Nem se lhe viam os botões da camisa! Mas acabou por se prender àquela presença e, quando deu por si, já mal dormia nas noites que antecediam a missa.
Não fosse ter-se casado com esse homem, que acabou por escavar-lhe também um buraco no peito, e nunca a Dona Agustina Dessa teria encontrado a criada Celinha que todos cobiçavam.

1.20.2009

Me porté como quien soy

Ceci n'est pas le Paradis II
Pedro Tavares - 2008



1.
Ele cicia um canto hondo enquanto mira a paisagem. De tempos a tempos, o sussuro musical desperta-a. Viajam no mesmo pequeno compartimento como se estivessem sós. De noites longas em noites longas, o cansaço apoderou-se dela. A pele continua lisa, é uma cara pálida que se deixa embalar pelo pouca terra muita terra. Ele tem um revestimento curtido pelo sol. Cicia. Os olhos são grandes, a memória longínqua.

O revisor faz deslizar a porta com brusquidão. Pica os bilhetes espreitando o par e vira as costas, deixando o corredor à vista, os passageiros expostos. Ah, estes homens tão pouco gentis, diz bem-disposto, enquanto se levanta para garantir privacidade ao casulo. Qual é essa canção? Isso é flamenco? Unh, não sei, é a minha música. Gosto dessa música, diz ela. E ele responde Se tivesse uma guitarra, cantava-lhe uma canção a sério. Vem donde? De Espanha, mas é segredo. Desci o Guadiana. Os olhos dela arregalam. Todas as quintas carrego o barco com mantas, colchas, lençóis, tudo da máxima qualidade, para distribuir nas feiras. Onde estão as mercadorias? Ah, hoje não trabalho. Deixei ordens ao meu irmão. Vou p’ra um casamento. E sorri largo.

2.
A memória que não se perde.
Estás a ver a feira de Espinho, ficava na vinte, entre as ruas trinta e três e trinta e cinco. Uma casa amarela, cheia de rachas, parecia que podia cair a qualquer momento. Não tinha porta, havia um carreiro à esquerda e entrava-se por uma janela que corria rente ao chão. Ela levou-me lá. Começámos a conversar porque nos encontrávamos todos os dias no trajecto para a escola. No início acho que nem gostava de mim. A mãe e a tia foram simpáticas. Queriam que eu lanchasse, e riam-se imenso. Eu estava admirada. As paredes forradas com um papel que tinha cornucópias de veludo, os sofás e poltronas majestosos, tudo em bourdeaux! Eu já os conhecia da feira mas não sabia que eram ricos.

E o imaginário que nos povoa.
As notícias hoje, as notícias todos os dias, este país é uma miséria. Vê o caso da escultura da Santa. O pároco cedeu-a por uns meses a um Museu e aconteceu um motim na aldeia. Um cigano foi baleado e está internado em estado grave. Na aldeia queriam bater no padre, no hospital bateram nos jornalistas. que eles só sabem dizer mal dos ciganos.

Nos hospitais têm medo. Quando uma mulher deita um ciganito ao mundo, ela dá pontapés, pragueja. E ai se corre mal, é tareia pela certa.
Experimenta meter-te com um, ciganos e navalhadas andam juntos. É claro que não são todos iguais. Há um que se formou. Era ele que ainda outro dia dizia “aproximam-se tempos maus”. Se eles não podem vender contrabando e contrafacção, vão vender o quê? Drogas e armas!

Uma miúda seguiu-me. Apanhou-me ali na ponte e nunca mais me deixou em paz. Teria uns seis anitos. Queria que lhe comprasse leite em pó Nidina II para o irmão. Passámos pelo supermercado e comprei-lhe o leite. Era era tão bonita.

Pois, é um problema com a escola. Se os obrigam a ir, fogem. Se querem ir, os pais dos outros alunos expulsam-nos. Os adultos vão aprender a ler só para receber o Rendimento Mínimo Garantido. Querem lá saber daquilo!

3.
Quando se olha do centro para fora, os ciganos são vistos no limite da fronteira. São portugueses e estrangeiros, ao mesmo tempo. Quando são eles que se olham, não são uma coisa nem outra, são ciganos. Agora ela está bem desperta e fala demais.
- Lembro-me de um casamento na minha terra. Vieram ciganos de todos os cantos do mundo. Vai ser assim, esse casamento?
- Não, só vem gente de Portugal e de Espanha. É quase só família!
- Uma vez, na minha terra, uma cigana casou-se com um homem que não era cigano.
- Pois, às vezes acontece, mas ela não deixou de ser cigana, ele é que passou a ser.
- Não sei.
- Mas eu sei.
- É mais fácil deixar de ser cigano do que passar a sê-lo.
- Se ela nasceu e cresceu cigana, é mais forte, tem mais ganas do que ele. E se ele não quer ser largado, tem que gostar dela como ela é.
Sorri largo.

4.
A honra é um valor primordial que organiza as relações amorosas e de poder entre ciganos. Em La Casada Infiel, de Lorca, um cigano narra a sua desilusão com a cigana que levara ao rio. Pensava que ela era solteira mas, ao saber que tinha marido, é obrigado a mostrar a sua honra de “cigano legítimo”:

Y que yo me la llevé al río
creyendo que era mozuela,
pero tenía marido.
(…)
yo me quité la corbata.
Ella se quitó el vestido.
Yo el cinturón con revólver.
Ella sus cuatro corpiños.
(…)
No quiero decir, por hombre,
las cosas que ella me dijo.
La luz del entendimiento
me hace ser muy comedido.
(…)
Sucia de besos y arena,
yo me la llevé al río.
Con el aire se batían
las espadas de los lirios.

Me porté como quien soy.
Como un gitano legítimo.
La regalé un costurero
grande de raso pajizo,
y no quise enamorarme
porque teniendo marido
me dijo que era mozuela
cuando la llevaba al río.

Garcia Lorca [1924-7]

5. Disse-lhe que podia aprender coisas novas com a Viviane. E a minha filha foi brincar com ela. À noite, antes de adormecer, murmurou: - ela não sabe. Não sabe o quê? - que é cigana.