11.03.2006

invenção



Lilly já foi Faustine e eu, numa pequena escala, fui Morel. durante algum tempo arranjei um processo, meu invento, de armazenar imagens, sons e sensações extraídas da realidade, que reproduzi, projectei repetidas vezes, envoltas em cenas de vida também capturada. Lilly Faustine encantou alguns refugiados políticos. enciumou solitários. encarcerou loucos. os seus amantes eram estranhos visitantes, odiados, invejados. por vezes, alguém avistava dois sóis ou duas luas e percebia o artifício. da presença simultânea do sujeito-objecto hoje e da sua imagem passada.
naquela casa, às vezes, o lençol era branco numa cena e depois azul, como se alguém se ocupasse da limpeza, como se o tempo passasse e usasse as coisas. mas também acontecia que o livro fosse lido e depois pousado exactamente no mesmo lugar, no mesmo ângulo, ao canto da mesa. algo irreal. suspeito. uma marca inusitada do invento.

Lilly Faustine talvez tenha existido mesmo, se não, o que captou a minha lente? com que engenho projectei uma imagem que nunca foi gravada? Ela existiu.

mas apanhou um barco e saiu da ilha.
ou ainda anda por lá e errei quando, numa noite, sonâmbula, peguei num bote e acostei noutra ilha. no Pacífico, existem tantas ilhas. parecem iguais mas cada uma tem o seu ecossistema, as árvores, mesmo da mesma espécie, diferem de tamanho, e o número de clareiras varia.

não, descuro os sinais.
pude perceber, houve indícios, de que em todas as ilhas Lilly Faustine estava morta. acho que pereceu contaminada pelas radiações que impulsionavam o engenho.

as imagens talvez se repitam eternamente. se o sistema de marés o permitir, se a força das ondas accionar o projector.
aconteceu agora. as chuvas, foram as chuvas. não sei o que foi. na verdade não percebo nada de marés.

também me acontece pensar que a ilha foi invadida. como pode Lilly Faustine acomodar-se naquela rocha até à hora do ocaso, a contemplar o horizonte, a espreitar um livro, se um intruso se sentar ao seu lado? é claro que eu Morel sempre permiti que a observassem, desconfio mesmo que coreografava os gestos, contava os tempos de cada movimento, estudava a postura. sussurrei volúpias e arrazoados dizeres. desconcertante! mas jamais imaginei que um espectador pudesse colar-se à imagem e fotografar-se ao lado de Lilly Faustine.

Lilly Faustine não existe há muito tempo. Eu sei, Lilly vê, Lilly cheira, Lilly sente o que toca, logo, Lilly tem alma. Mas o que eu Morel ofereço é uma imagem, que não se acaricia.

aguardo que ela deseje reaparecer. abri até uma enseada. enquanto vou consertando o engenho. na biblioteca encontrei um livro que talvez me esclareça sobre as novas correntes geomagnéticas da Terra.

7 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Gostei
( o ambiente, texto, .....)
:)

9:54 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Criptica como sempre. Só quem leu o livro te compreende. Mas como escreves bem, quando queres. Impossível não gostar. Do texto. De ti.

2:10 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

(...)aconteceu agora. as chuvas, foram as chuvas. não sei o que foi. na verdade não percebo nada de marés.(...)


Brilhante!


Abraço!
_______________

1:58 da manhã  
Blogger Filipe Moreira said...

parabens por este post.
:)

11:02 da tarde  
Blogger Toze said...

Tanta saudade Lilly...

6:08 da tarde  
Blogger inominável said...

um post lindo. atípico. não compreendi bem. mas para quê compreender mais?

10:28 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Belo texto. De que livro? Livro teu? Livro onde te inspiras? Alguém.

12:55 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home