11.13.2006

a porta

Sokolsky

acabei por me despir. quando olhei para trás, as roupas tinham desaparecido. pareceu-me ver um rasgo de tinta escapar por baixo da porta fechada. instalei-me ali, no lugar. encostei-me às paredes, rocei-me por todas as superfícies. tacteei o chão. as mãos secaram e lambi-as. atravessei o lugar. medi-o em pés. medi-o em corpo. atravessei o lugar. e bati, bati com toda a força na porta. chamei. atravessei o lugar. chamei. nunca responderam. nem mesmo se distrairam. quando os homens se distraem deixam a televisão acesa e posso imaginá-los no fundo do corredor, atrás de outra porta, sentados à volta de uma mesa a discutir. às vezes o meu barulho provoca um silêncio. mas isso não aconteceu. agarrei-me a mim. dobrei-me. a minha explicação ficou do lá de cá da porta.

às vezes adormeço. sonho com terra lavrada, extensões imensas cultivadas, toco as plantas, os meus dedos sentem a textura das folhas, ouço um ribeiro que corre, levo à boca a água fresca. e acordo com frio. urlo. mas a porta não abre. ontem reclamei tanto que jorraram litros de tinta vermelha. entraram por debaixo da porta. aproximaram-se primeiro dos pés e, como uma ligadura, foram-me envolvendo. a tinta fez um nó nos tornozelos, à volta dos joelhos, nos pulsos, cobriu-me a boca. a tinta atou-me. fiquei imóvel e muda.

se a porta não abrir, ninguém vai saber.
quando não penso em nada, pequenos laivos de cor vão desaparecendo.














já tenho os cabelos soltos. as mãos libertas. movo os lábios. grito: abram a porta.
um líquido azul desce pela fechadura. inunda-me. não é que doa mas a cada tentativa, este lugar enche-se de cor.


consegui virar-me. de costas para a porta, talvez os engane. o suficiente para voltar a grunhir que quero a porta aberta para explicar. eu tenho uma teoria. eu tenho provas. vão cair paradigmas. quando olharem uns para os outros, homens e mulheres vão deixar de se reconhecer.
nos cantos do lugar apareceram pingos amarelos. pequenos fios cor de laranja cercam-me os seios. as minhas lágrimas são verdes.

eu tenho uma teoria. não sei porque não abrem a porta.



abri a porta quando o silêncio se prolongou por vários dias.
ela dormia. julgo que já não vai acordar.
o lugar ficou tingido de verdades coloridas.
não reconheci nenhuma.

por que persistiu? vou precisar de muita água.
- o guardião

10 Comments:

Blogger A. Pinto Correia said...

Eis uma forma suigeneris de se chegar à verdade
Beijo

11:07 da tarde  
Blogger Silvia Chueire said...

o sonho, o delírio, os milhares de palavras do silêncio e a nossa humanidade expostos.
gostei de ler este texto.

abraços,

silvia

9:00 da tarde  
Blogger Bandida said...

Belíssimo o texto!



a cor.

o silêncio.


...às vezes.


abraço!
_______________________

9:21 da tarde  
Blogger JFDourado said...

belas asas do silêncio

beijos

10:41 da tarde  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Não há quem não resista a uma porta fechada.

a tentação é sempre abri-la.


bjo saudoso


csd

6:01 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Com o silêncio te deixo um beijo desejando um Bom e Feliz Natal.

9:38 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Que texto tão lindo! Não sei se percebi muito bem, essa da porta. Mas é lindo. Continua, Rose linda.
Lilly querida. Beijinhos... e abre a porta.

5:02 da manhã  
Blogger ~pi said...

achei o texto fascinante. pelo espaço oferecido ao sonho...

foi um prazer ler-te.

4:14 da tarde  
Blogger Zedlav said...

como gostei do teu silêncio...


Zedlav

1:07 da tarde  
Blogger Profundezas said...

Estou perpexa de fascínio. Adorei, Colei-me ao texto instantaneamente!

3:44 da tarde  

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