4.13.2009

torre sineira #2


Subitamente levantou o pulso, procurou a hora que o seu relógio marcava e deu-se conta de que o tempo parara. O ponteiro dos segundos estava enredado no dos minutos, presumiu que a hora seguinte nunca chegaria.

Em baixo, na praça, um homem parou quando a avistou. Olhou para o relógio da torre e não convencido da inevitabilidade da paragem do tempo, sobressaltou-se. Durante um minuto, o movimento dos seus olhos quase enjoou do balanço. Os sinos, ela, o relógio, os sinos, ela, o relógio. Anteviu o movimento súbito, lento, vigoroso, do bronze pesado, afinado, mortal. Os braços abertos sobre a saia que esvoaçava. Não via o rosto. Quis gritar: - Afaste-se!

Sentindo-se abençoada, ela permanecia imóvel, obedecendo à ordem do tempo. Estranhou sentir o rosto formar um sorriso, um pequeno sorriso que deveria ter permanecido interior. O olhar pousou então um pouco, o suficiente para avistar um homem que, tal como ela tantos dias, estancara face à visão da torre cantante.

Quando estalou um ruído seco de alavanca...




[Imagem: José Rodrigues - Sem título - Técnica mista sobre cartão - 24,5cm x 31,5cm]

torre sineira


Sempre que atravessava aquela praça olhava a torre. Por vezes os sinos repicavam no exacto momento em que ela passava e então parava, sustinha os movimentos, hipnotizada. Uma torre assim nos Paços do Concelho era engraçado. Em vez de Deus, era o poder laico que ditava o horário, advertindo a população sobre o momento do despertar ou do recolher, ou apenas da pausa, das pausas, ou da necessidade de se apressar, de correr ao som do quarto de hora para não chegar atrasado ao encontro à hora certa.
Sempre que cruzava a praça, olhava para o relógio. gestos irreflectidos, de estender o braço, puxar a manga, olhar sem ver, quase, com a intenção arcaica de se certificar que o mecanismo continuava saudável. Ou fazia apostas infantis. chegaria à floreira antes do primeiro toque, dobraria a esquina antes da última badalada, ou adivinharia o exacto momento em que começariam os sinos a repicar. agora não, agora sim… sem que tivesse alguma importância acertar ou não. Às vezes, compassava pensamentos ou palavras com o som.

Foi com uma alegria excessiva, despropositada, que aceitou entregar a encomenda na torre. Logo à entrada do edifício, o segurança orientou-a. A secção que procurava ficava no último andar, deveria subir, de elevador até ao segundo piso, depois a pé. Quando chegou ao lance de escadas, tosco, irregular, apertado, percebeu que estava precisamente no alto da torre. Como num velho castelo, equilibrava-se apoiando-se nas paredes. A meio percebeu uma porta mas decidiu não entrar. Os sinos estavam ali ao seu alcance. Continuou a subir. O corredor estreitava, os ângulos apertavam, até uma corrente de ar fresco ganhar corpo, adensar, e uma luz intensa quase a cegar. E de súbito, ei-los, gigantes, compactos, poderosos. Aproximou-se devagar, deslizou silenciosa pelas traseiras do primeiro, depois avançou, colocando-se entre os dois primeiros sinos, e estancou. O horizonte distante, o mar ao longe, e ainda o outro lado da baía, mais próxima a paisagem de telhados e arvoredo, até chegar à praça que conhecia tão bem, ali em baixo, com as suas floreiras e o empedrado geométrico. Subitamente levantou o pulso, procurou a hora que o seu relógio marcava. olhou a encomenda como a última oferenda de uma vida de trabalho. criou outro tempo.



[Imagem: José Rodrigues - Anjo - Técnica mista sobre cartão - 106cm x 60cm - 1997]