9.22.2006

raíz #2

Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto

Ruy Belo

9.20.2006

raíz #1

E fiz força, comigo, para me soltar do encantamento.

Guimarães Rosa, Primeiras estórias

era uma vez

Lars Lhring


envoltas em papel de fadas começavam sempre com era uma vez as histórias que me contavam na infância
mãos que desfolhavam os mistérios doces mãos acetinadas todas as mãos que me tocaram adormecidas no meu conforto da sucção do dedo do sossego da noite sob o manto da cama
até ao despertar das paixões que me envolviam como histórias de fadas amarravam libertavam encantos sentidos primeiros sentidos prantos de quem conhece a perda trôpega vela fadas sem asas quem suplica à memória marcas dos abraços apenas daqueles braços suplica à memória traços tules feitos em pedaços que me tocaram depois todo o corpo feito colo até se abrir o ventre sobre o manto da cama esquecido o primeiro espanto de quem arde por dentro lança chamas deixa crescer as garras sob mãos adormecidas em leitos de rios suaves mornos abraços apenas daqueles braços.

9.17.2006

escuta a minha voz

JOHN CAGE. OBRA: 4 MINUTOS E 33 SEGUNDOS.



A escolha dos 4 minutos e 33 segundos é devido aos 273 segundos. Na escala Kelvin de temperatura, -273º C corresponde a 0 K, que é o zero absoluto, ou seja, estado de repouso completo das moléculas.

9.14.2006

era uma vez

Lars Lhring


embalam-nos com fadas e meiguice, contam-nos histórias que começam sempre por era uma vez e na manhã seguinte ou passados vinte anos, que importa, é subitamente, recebemos bofetadas de atrocidades, tareias de um realismo insuportável. falo-te desse momento em que acontece a despedida da infância. a guerra passa a existir. o conforto é sobretudo alívio. sinceridade e provocação vivem dentro de nós paredes meias. avançamos a pulso. fracturamos o corpo, corpos. medimos o pulso quando deixamos de nos sentir. não ardemos, secamos. e ao amor e à arte chamamos milagre.

9.11.2006

intensidade

Je le vis, je rougis, je pâlis à sa vue;
Un trouble s'éleva dans mon âme éperdue;
Mes yeux ne voyaient plus, je ne pouvais parler;
Je sentis tout mon corps, et transir et brûler.

Phèdre quando encontra Hippolyte pela primeira vez
Racine, Phèdre (1677)


intensidade. dizes que me falta. quando te escrevo, não sei se quando te olho. e dissecas-me. o passado, o dia, a tarde, as noites puras e aquelas em que busco respostas. transformas camas em sofás e que me confesse, sem saberes que a psicanálise, não sendo um discurso que nos proibe de ter prazer, permite justamente que não tenhamos prazer. como se o teu desejo último fosse o meu desejo da não-satisfação, tu que me dás tanto prazer. bato-me para fechar o desejo que se abre de forma tão inoportuna. sabes, o mais delicioso, o mais forte, acontece quando menos esperamos. há todo um ritual de descobertas entre surpresas e desilusões, e a obra inesperada do que sou, és, e somos, há-de emergir. aos poucos. como um livro se revela página a página, batendo-se contra a nossa ignorância, a nossa diferença ou indiferença, o nosso sono.
pedes-me entusiasmos, superlativos, numa vida que está em fim de ciclo e que me pesa por todas as impressões contraditórias, distorsões naturais do verbo, ou desuso familiar da razão. a intensidade é a maior de todas as subversões. um mergulho na bizarria da quimera. e contudo...
e contudo eu sei que existem palavras mágicas, palavras que elevam o canto do mundo, nos batem no peito com força, tanta força que a maior arte é saber retê-las e domá-las, para que nos deixem mas regressem sempre. se numa qualquer Babilónia me oferecessem esse dom usá-lo-ia para te agradar, acasalando-o com todo o saber que derivasse do que está dentro e acima da consciência. uma espécie de perfeição.
de que não padeço. e que ninguém, nenhum amante, nem mesmo um deus, merece. ou não fosse o amor a aprendizagem do sofrimento e a adoração incondicional do limite que é o outro.
intensidade. lê os meus olhos.

lê os meus olhos